Clara Contra Golias
Dir: Kleber Mendonça Filho, Brasil, 2016, 2h22minIMDB Trailer
Aquarius foi o filme mais falado no Brasil neste ano, mais pelo protestos liderados por seu elenco e equipe do que por seu conteúdo. Mas e o filme, é bom? Pois é, isso é o que menos se discute.
Aquarius ocupou mais espaço no noticiário político do que no cultural recentemente, em razão de seus realizadores terem utilizado o Festival de Cannes e outros espaços como palco para seus protestos contra o processo de impeachment. Assim, a turma antipetista passou a odiar Aquarius sem vê-lo, enquanto a turma contra o impeachment passou a amá-lo incondicionalmente também sem vê-lo, o que faz com que Aquarius fosse muito mais julgado pelas bandeiras levantadas do que pelo que é.
O simbolismo ficou maior que a obra. Ver ou não o filme se tornou mais um ato político do que um evento cultural. Nada contra os protestos, pois neste espaço defende-se a liberdade de expressão de forma muito ampla, mas sendo este um blog de crítica cinematográfica, há que se afastar as opiniões políticas e analisar a obra em seu contexto.
Feita esta consideração inicial sobre a polêmica política que envolveu o filme (que quase nada tem a ver com a obra), resta dizer que Aquarius é um filmaço!
A trama centra-se na protagonista Clara (Sonia Braga), última moradora de um antigo prédio residencial na praia de Boa Viagem em Recife, cujos demais apartamentos foram todos adquiridos por uma construtora que deseja erguer um moderno condomínio-clube-fortaleza. Clara resiste a ideia de vender seu imóvel, pois passou sua vida lá e não vê motivos para deixar o lugar. Este é o eixo condutor da obra. Uma alegoria da luta entre um Brasil que vai ficando para trás frente a uma modernidade que quer destruir os sinais do passado, mas mantendo as mesmas pessoas no poder.
Apesar do tema central sempre estar presente, o filme é muito maior que esta batalha de uma mulher contra o poder econômico, uma representação do mito bíblico de Davi contra Golias. O filme é sobre a vida de Clara, passando por seus relacionamentos com seus familiares, com seus vizinhos, com seus amigos, com sua empregada, sobre sua saúde, sua sexualidade. Enfim, sobre suas dores e alegrias.
O roteiro, centrado nesta vida, tem grandes momentos. Há muitos bons diálogos. Os temas pessoais de Clara são abordados de maneira madura, sem excessos dramáticos, ora de maneira leve, ora de maneira dura. Há diversas críticas sociais, algumas muito bem feitas, mas algumas outras ficam um pouco deslocadas do tema com um ou outro diálogo didático demais, parecendo uma frase pronta de universitário de humanas, soando artificial. Mas estes pequenos defeitos não chamam a atenção frente ao brilhantismo da obra.
O filme é muito bem dirigido, com destaque para a fotografia que acerta em bons enquadramentos, com destaque para algumas tomadas aéreas que se iniciam focadas nos personagens e abrem-se muito, mostrando a cidade de Recife (quase um personagem na obra) em que os personagens se inserem. Na produção há que se destacar a ótima caracterização dos anos 80, com um menino usando camiseta de marca de cigarro, garrafas de vidro de cerveja e de refrigerante sobre a mesa em uma festa e diversas pessoas fumando sem preocupação em uma ambiente fechado cheio de crianças. Os que tem mais de 30 anos vão se sentir de volta ao passado. Esse nosso estranhamento e nostalgia com o passado não tão distante lembra um pouco a ótima série Mad Men. Também se destaca a bela trilha sonora, que se encaixa perfeitamente à obra e à protagonista, que era crítica musical. Destaque para a belíssima canção Hoje, de Taiguara.
O roteirista e diretor Kleber Mendonça Filho, em seu filme anterior, O Som ao Redor (pitaco aqui), tinha um bom tema mas o tratou de forma arrastada, sem foco e maçante. Aqui não, especialmente pelo fato de ter uma narrativa central, o que não havia na obra anterior. Alguns cacoetes ele manteve, como a utilização de fotos antigas na abertura da obra e as já citadas cenas deslocadas da narrativa central. O foco quase que constante em Clara nos faz levar a viver seus dramas com ela. A direção de atores também é ótima.
Com essa direção todo o elenco trabalha bem, mas o destaque é sem dúvida a onipresente Sonia Braga. Sua atuação é fenomenal, ao mesmo tempo sutil e impactante, mostrando diversas faces de sua personagem que cativa o público numa estória em que cada um pode se identificar em algum aspecto. Já existe um pequeno lobby para sua indicação ao Oscar 2017, o que seria muito merecido.
Com relação à polêmica não indicação de Aquarius na vaga brasileira do Oscar pelo comitê brasileiro que escolheu Pequeno Segredo há que se fazer algumas considerações.
Primeiro, não dá pra saber se a escolha foi política ou não, como forma de boicote por conta dos protestos feitos pelos realizadores do filme. Acreditar piamente na hipótese do boicote é ir na linha do tão falado "não tenho provas, mas tenho convicção" versão "Fora, Temer". Não se nega que a hipótese pode ser verdadeira, pois foi estranho o que ocorreu.
Segundo, o ainda não lançado Pequeno Segredo tem que ser uma obra espetacular (e muitos que o viram já estão dizendo que não é) para bater Aquarius, pois não é todo dia que se fazem filmes tão bons.
Por fim, uma das justificativas do comitê para a indicação foi a da "adequação ao gosto da Academia". Não se sabe exatamente o que isso quer dizer, mas talvez signifique um filme dramático sentimental e fofo, tipo A Vida É Bela. Pois bem, não sei se o comitê sabe, mas as últimas obras que venceram o prêmio de melhor filme em língua estrangeira não se enquadravam nisso. Os últimos cinco premiados, o iraniano A Separação (premiado em 2012), o francês Amor (2013), o italiano A Grande Beleza (2014), o polonês Ida (2015) e o húngaro Filho de Saul (2016) não são filmes fofinhos ou agradáveis, são todos obras pesadas, reflexivas, com narrativas pouco convencionais e alguns até violentas. Nem mesmo os últimos vencedores do prêmio principal são filmes bonitinhos, e se tornou um chavão falso acreditar que os tais "velhinhos da Academia" são excessivamente conservadores.
Aquarius gerou muita polêmica em meio ao cenário político polarizado que estamos vivendo. Seria uma pena que o filme ficasse marcado no imaginário coletivo somente pela polêmica do momento atual, pois é uma grande obra, que deveria ser vista por todos, independentemente de se considera que o que aconteceu neste ano foi um impeachment ou um golpe. Felizmente o tempo fará com que este fato político fique no nosso tempo, e o filme será lembrado somente por seu ótimo conteúdo.
Nota: 9