Ponte dos Clichês Americanos
Bridge of Spies, Dir: Steven Spielberg, EUA, 2015, 141minIMDB: clique aqui
Trailer: clique aqui
[Atualização: Na corrida do Oscar 2016 recebeu 6 indicações: filme, ator coadjuvante, roteiro original, design de produção trilha sonora e mixagem de som. Só tem chances em ator coadjuvante e design de produção (que são merecedoras de elogios), mas possivelmente não vai ganhar nada.]
No primeiro ato da trama, o advogado Jim Donovan (Tom Hanks) é requisitado para defender um espião soviético que agia em solo americano, Rudolf Abel (Mark Rylance). No segundo ato, após o processo em que ele consegue salvar seu cliente da pena de morte, ele é requisitado pela CIA para trocá-lo por um prisioneiro americano, um piloto abatido na URSS, Francis Powers (Austin Stowell), que estava em poder dos soviéticos.
De início já temos de relevar algumas patriotadas do filme. Como costuma ocorrer, há uma quase profissão de fé em torno do "american way of life" e do sistema legal do país (com direito a cena com as crianças prestando juramento patriótico em sala de aula, bastante desnecessária ao andamento da trama). Como a estória é boa e bem contada (até certa parte, que discutiremos em breve), dá pra aceitar tais exageros, já que não tomam tanto espaço.
A primeira cena é bastante interessante, parecendo se tratar de um filme europeu, pois faz uma longa tomada do espião russo, sem diálogos, só focando em pequenos gestos de sua rotina e o monitoramento que o FBI realiza sobre ele. A espionagem aqui passa longe dos delírios cinematográficos da linha James Bond/Ethan Hunt.
A primeira parte tem diversos méritos, especialmente por discutir o papel do advogado de defesa no exercício da Justiça. Donovan passa a ser visto com desdém por boa parte da sociedade e sua posterior insistência em recorrer a Suprema Corte após já estar afastada a possiblidade de pena de morte passa a incomodar até mesmo seus sócios e sua família, que não entendem porque ir tão longe com esse caso. Tal construção é muito interessante, pois seria necessário que todos pudessem diferenciar o advogado do cliente que ele defende. Defender bandido não é ser bandido. Depois que vimos no Brasil advogados de réus célebres sendo agredidos na rua (leia a notícia aqui) é bom reforçar isso.
Na segunda parte, Donovan tem de fazer a troca de prisioneiros à margem dos contatos oficiais dos países, e aí os problemas do roteiro do filme começam a se agravar (provavelmente os brilhantes irmãos Joel e Ethan Cohen, que são corroteiristas, pararam por aí). Berlin Oriental provavelmente não era o melhor lugar do mundo para se viver no início dos anos 60, mas as cores são extremamente carregadas por Spielberg. Os soldados alemães orientais são retratados como um bando de trogloditas loucos para bater nos traidores do socialismo. E o maniqueísmo spielbergiano torna-se ainda mais evidente. Enquanto mostra o piloto americano sendo submetido a tortura psicológica pelos soviéticos, com privação de sono e água fria na cara, para revelar seus segredos, o soviético preso nos EUA é sempre mostrado com tratamento de primeiro mundo. Depois do que o mundo viu o que ocorreu em Guantánamo e Abu Ghraib, é quase impossível que o espectador bem informado acredite em tamanha benevolência dos americanos.
E no clímax do filme parece que estaciona na ponte da troca dos espiões um caminhão de clichês e despeja todo seu conteúdo. Os diálogos, as tomadas, o cenário, a música e as atuações, ou seja, todos os elementos, servem para compor o heroísmo de Donovan, servindo como metáfora dos EUA.
E o que já estava ruim fica ainda pior, pois Spielberg, em sua obsessão patológica por finais felizes, parece se ver obrigado a contar como é o retorno de Donovan para casa, o que poderia ser suprimido do filme e melhorado a obra. Tal final lembrou-me muito de A.I.: Inteligência Artificial, em cujo fim há uma cena linda, em que o pequeno andróide fica vivendo em uma esperança vã eterna. Se o filme terminasse ali seria uma grande obra. Mas Spielberg estraga a ideia original que tinha trabalhado com o genial Stanley Kubrick e inventa uma estória sem pé nem cabeça, em que tem que trazer aliens para a Terra (é isso mesmo!) e fazer a alegria do robozinho. [Errata: como fui corrigido por dois comentários, não eram ETs, mas robôs mais avançados. Peço desculpas pelo erro, mas não muda minha opinião sobre o final].
Apesar dos defeitos do cinema de Spielberg, é inegável a grande qualidade técnica de todos os filmes em que ele se envolve. A fotografia é discreta em muitos momentos, utilizando-se de muitos cenários escuros iluminados somente por luz que vem de uma janela. Nos momentos com maior ação sempre há câmeras em movimento. O design de produção é bem feito, com apuro nos detalhes. E a edição não cansa o espectador, especialmente com as pitadas de humor inseridas nos momentos corretos.
O filme conta com somente dois atores em papéis realmente importantes, os mencionados Hanks e Rylance [atualização: indicado ao Oscar de coadjuvante]. Hanks está em sua melhor atuação dramática desde Náufrago (e lá se vão 15 anos), e é quase certo que só seu nome já basta para lhe garantir uma indicação ao Oscar, já que ganhou a indicação até mesmo com sua atuação razoável em Capitão Philips (clique aqui para ler o pitaco). A produção até comete um erro de escalação ao colocar um ator de renome como Alan Alda em um papel quase que figurante e que nada acrescenta. Uma boa surpresa é ter o bom ator alemão Sebastian Koch, protagonista do ótimo A Vida dos Outros (clique aqui para ler o pitaco), no papel de um agente da Alemanha Oriental.
Tenho um profundo respeito por Spielberg, que revolucionou o cinema na virada entre os anos 70 e 80. Mas desde os anos 90, em que fez em sequência os celebrados Jurassic Park e A Lista de Schindler, não apresenta nenhum filme memorável. Aliás, revi recentemente esse último, e apesar de haver um herói relutante e um vilão nazista monstruoso, Spielberg conduz o filme de maneira muito mais séria e com a mão muito mais calibrada.
Apesar disso tudo, a chance da Academia ignorar toda essa patriotada (ou não só ignorar, como vibrar com todos esses exageros de endeusamento da nação) e incluir o filme em diversas categorias no próximo Oscar é quase certa, haja vista que outra patriotada maniqueísta como Sniper Americano (clique aqui para ler o pitaco) estava na lista de melhores filmes na última premiação [atualização: previsão confirmada].
Ponte dos Espiões tem todos os méritos técnicos dominados por Hollywood mas que desperdiça uma boa estória em meio a seu maniqueísmo e patriotismo exagerados. O que faz o espectador mais culto querer fugir cada vez mais de filmes de estúdio, já que parece que em todas as estórias contadas por eles é necessária a presença de um herói, e não de pessoas reais. A seriedade e o realismo passam longe.
E o que já estava ruim fica ainda pior, pois Spielberg, em sua obsessão patológica por finais felizes, parece se ver obrigado a contar como é o retorno de Donovan para casa, o que poderia ser suprimido do filme e melhorado a obra. Tal final lembrou-me muito de A.I.: Inteligência Artificial, em cujo fim há uma cena linda, em que o pequeno andróide fica vivendo em uma esperança vã eterna. Se o filme terminasse ali seria uma grande obra. Mas Spielberg estraga a ideia original que tinha trabalhado com o genial Stanley Kubrick e inventa uma estória sem pé nem cabeça, em que tem que trazer aliens para a Terra (é isso mesmo!) e fazer a alegria do robozinho. [Errata: como fui corrigido por dois comentários, não eram ETs, mas robôs mais avançados. Peço desculpas pelo erro, mas não muda minha opinião sobre o final].
Apesar dos defeitos do cinema de Spielberg, é inegável a grande qualidade técnica de todos os filmes em que ele se envolve. A fotografia é discreta em muitos momentos, utilizando-se de muitos cenários escuros iluminados somente por luz que vem de uma janela. Nos momentos com maior ação sempre há câmeras em movimento. O design de produção é bem feito, com apuro nos detalhes. E a edição não cansa o espectador, especialmente com as pitadas de humor inseridas nos momentos corretos.
O filme conta com somente dois atores em papéis realmente importantes, os mencionados Hanks e Rylance [atualização: indicado ao Oscar de coadjuvante]. Hanks está em sua melhor atuação dramática desde Náufrago (e lá se vão 15 anos), e é quase certo que só seu nome já basta para lhe garantir uma indicação ao Oscar, já que ganhou a indicação até mesmo com sua atuação razoável em Capitão Philips (clique aqui para ler o pitaco). A produção até comete um erro de escalação ao colocar um ator de renome como Alan Alda em um papel quase que figurante e que nada acrescenta. Uma boa surpresa é ter o bom ator alemão Sebastian Koch, protagonista do ótimo A Vida dos Outros (clique aqui para ler o pitaco), no papel de um agente da Alemanha Oriental.
Tenho um profundo respeito por Spielberg, que revolucionou o cinema na virada entre os anos 70 e 80. Mas desde os anos 90, em que fez em sequência os celebrados Jurassic Park e A Lista de Schindler, não apresenta nenhum filme memorável. Aliás, revi recentemente esse último, e apesar de haver um herói relutante e um vilão nazista monstruoso, Spielberg conduz o filme de maneira muito mais séria e com a mão muito mais calibrada.
Apesar disso tudo, a chance da Academia ignorar toda essa patriotada (ou não só ignorar, como vibrar com todos esses exageros de endeusamento da nação) e incluir o filme em diversas categorias no próximo Oscar é quase certa, haja vista que outra patriotada maniqueísta como Sniper Americano (clique aqui para ler o pitaco) estava na lista de melhores filmes na última premiação [atualização: previsão confirmada].
Ponte dos Espiões tem todos os méritos técnicos dominados por Hollywood mas que desperdiça uma boa estória em meio a seu maniqueísmo e patriotismo exagerados. O que faz o espectador mais culto querer fugir cada vez mais de filmes de estúdio, já que parece que em todas as estórias contadas por eles é necessária a presença de um herói, e não de pessoas reais. A seriedade e o realismo passam longe.
Nota: 4
Puxa... Ainda não assisti o filme, mas estava numa admiração de suas colocações bem claras... Até... ... Chegar a parte que o AI - Inteligência Artificial que diz ser finalizado desnecessariamente e que os robôs foram entendidos por você como alienígenas. Talvez se você tivesse entendido que são apenas robôs de uma geração milenar, teria gostado do final.
ResponderExcluirMas não vai ser por esse comentário que não vou continuar a leitura!!!
Você tem muitas boas colocações.
P.S.: Achei o final mágico! Parece outro filme, pois daria para começar com o despertar de um robô que teve uma paixão materna e uma nova geração milenar de robôs, celebram o resquício fóssil da humanidade em amar. E o amor mais completo que é o materno.
Esse filme é uma obra de arte... Um quadro completo de sentimentos.
Abraço!!
Prezado anônimo,
ExcluirInicialmente, agradeço pelo comentário e por sua discordância respeitosa. Obviamente, não sou o dono da verdade e pontos de vista diversos são muito bem vindos.
Quando você assistir Ponte dos Espiões, analise se o filme não ficaria melhor se encerrando logo após feita a troca dos espiões (pra mim já tinha até muitos exageros na troca, mas depois ficou ainda pior). Talvez você siga discordando, mas pode compreender melhor meu ponto de vista com essa análise crítica. Se parasse lá eu daria nota 5, e não 4.
Quanto ao A.I. eu vi o filme no cinema, ou seja, faz bastante tempo, e não tenho anotações, só minha lembrança. Aparentemente tinham me parecido ETs, mas você tem razão e podem ter sido novos robôs. Mas, enfim, achei exagerado o final, de qualquer maneira. Gosto de filmes que nos dão um tapa na cara mostrando que o mundo é duro, algo que o Kubrick costumava fazer. Em alguns casos o final feliz é legal, mas não quando é forçado, como me parece frequentemente nos filmes do Spielberg.
Novamente, agradeço pelo comentário e por acompanhar meu blog. Sinta-se à vontade para comentar aqui sempre que quiser.
Abraço!
Olá Cristiano, aqui é Andre de Curitiba. Vi o filme ontem e gostei bastante da sua análise. eu já conhecia a história de Donovan e fiquei curioso em saber como ele seria retratado. Concordo com você sobre a forma como os prisioneiros são tratados. A velha história em dividir o mundo em bons e maus...É exagerada a cena quase sem corte do tratamento dado ao piloto sob pressão e o espião malvado. Um era bom e estava a serviço da salvação do planeta e o outro iria transformar o planeta no caos. enfim, só dá para dizer que é absolutamente ridícula a cena é o pensamento. Claro que não se explora o valor de Donovan na história. Isto ficou em oitavo plano, retratado talvez em uma fala de 5 segundos. Para mim o valor De Donovan, foi ter "sacado" a importância e o valor da negociação e do valor de troca naquele ambiente nacionalista. Tem um resgate bacana de um personagem que se perdeu na história. Quando ele diz que vai apelar à suprema corte pela sentença todos se voltam contra ele e na verdade ele estava certo. O problema estava do dois lados. Não existia um lado atacando. Achei o filme, apesar de alguns exageros, bom. Gostei muito da interpretação do Tom. Acho que ele cresceu bastante durante o filme. Sai convencido. De qualquer forma, parabéns pela sua análise. Vou seguir você. Abs
ResponderExcluirPrezado Andre Perez,
ResponderExcluirInicialmente, agradeço por seus elogios. Não acho o filme de todo ruim, pelo contrário. Até a ponte eu estava gostando e relevando boa parte do maniqueísmo e das patriotadas. Mas daí pra frente achei que os excessos estragaram a obra. Sua análise sobre a insistência de Donovan de apelar à Suprema Corte e a grande percepção estratégica no valor do prisioneiro é muito precisa. Concordo que Tom Hanks fez um grande trabalho, assim como o Mark Rylance.
Ficarei honrado de ter um seguidor do blog tão sensato e com olhar tão apurado. Tenho tentado fazer uma postagem por semana, normalmente às terças-feiras (amanhã publico Ex Machina). No arquivo há também mais de 70 filmes analisados (incluindo todos os indicados ao Oscar de Melhor Filme das últimas duas premiações). Aguardo seus próximos comentários.
Grande Abraço!
No final de A.I não são aliens, são robôs avançados, eles ficam fuçando a Terra e o legado de seus criadores com o propósito de saber porque vivem. Após acharem o menino e urso-robô eles dizem: "esses robôs são originais"
ResponderExcluirCaro bruno miranda, agradeço pelo comentário e pela correção. Vi A.I. nos cinemas, há um bom tempo... vou corrigir a postagem.
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